Desafios da pesquisa
positivista-quantitativa em contabilidade
A pesquisa é um
processo de descoberta intelectual com o poder de transformar nosso conhecimento
e entendimento sobre o mundo que nos cerca (Ryan, Scapens, & Theobold,
2002). A forma como o pesquisador compreende o mundo influencia, por sua vez, o
modo como uma pesquisa é desenvolvida. Esta maneira de compreender a realidade
que nos cerca está relacionada a posição ontológica do pesquisador, ou seja,
como este percebe os fenômenos, físicos ou sociais, que estão sendo
investigados (Saccol, 2009). Simplificadamente existem duas posições
ontológicas, antagônicas em essência, possíveis de serem adotadas por quem
pesquisa: realista ou idealista (Richardson, 2012).
Um(a)
pesquisador(a) de ontologia realista enxerga os fenômenos de maneira objetiva,
acreditando na existência de uma realidade independente da existência ou da
percepção do ser humano (Saccol, 2009). Antagonicamente, um(a) pesquisador(a)
de ontologia idealista enxerga os fenômenos de maneira subjetiva, como frutos
da construção social (Ryan, Scapens, & Theobold, 2002), no qual o contexto,
pensamentos e sentimentos de quem pesquisa moldam a percepção acerca do
fenômeno investigado (Saccol, 2009). Em suma, enquanto aquele que adota uma
posição ontológica realista enxerga uma realidade objetiva, independente de sua
existência, aquele que adota uma posição ontológica idealista enxerga uma realidade
subjetiva, cuja existência depende de si.
O direcionamento
epistemológico adotado por um pesquisador está, de acordo com Saccol (2009),
fortemente associado a estes pressupostos ontológicos (realismo ou idealismo).
Enquanto a ontologia trata da forma como se percebe a realidade, a
epistemologia trata da forma como se obtém conhecimento acerca dessa realidade
(Ryan, Scapens, & Theobold, 2002). Na pesquisa em contabilidade, diversos
autores (Brown & Jones, 2015; Dyckman & Zeff, 2015; Oler, Oler, & Skousen,
2010) argumentam que o positivismo é a epistemologia predominante.
De posicionamento
ontológico usualmente realista (Gray, 2013), para o pesquisador que segue a
tradição positivista a pesquisa em contabilidade tem por objetivo explicar e
predizer fenômenos relacionados a informação e a prática contábil (Watts &
Zimmerman, 1986). Neste sentido, para os pesquisadores positivistas em
contabilidade, a realidade é uma estrutura concreta, objetiva, independente e
neutra (value-free), regida por leis gerais sendo possível a quem
pesquisa reduzi-la a uma série de variáveis dependentes e independentes, a fim
de se identificar relações de causalidade, fundamentando-as em teorias
econômicas, em sua maioria (Major, 2017). É
devido ao uso de grandes bancos de dados e ferramentas estatísticas que a
epistemologia dominante também é conhecida por positivista-quantitativa.
De maneira geral, para identificar estas relações de
causalidade, o pesquisador positivista-quantitativa deve elaborar um desenho de
pesquisa que permita que a evidência obtida seja suficiente para responder a
hipótese inicial da maneira mais inequívoca possível (Vaus, 2001). Neste
ensaio, procuro apresentar algumas dificuldades enfrentadas no processo de
validação do desenho de pesquisa. Para tanto, vê-se antes necessário
compreender, além do objetivo da pesquisa positivista-quantitativa, os desenhos
de pesquisa que podem ser empregados pelo pesquisador de tradição
positivista-quantitativa. Mais à frente, tratar-se-á dos desafios enfrentados ao
validar estes desenhos de pesquisa.
Existem dois desenhos de pesquisa que podem ser
empregados na contabilidade: experimental e quase-experimental. Por experimento
(experimental ou quase-experimental), entenda-se o procedimento de verificar os
impactos de uma variável independente sobre uma variável dependente, ou seja, o
procedimento de verificar se existe ou não uma relação de causalidade (Ryan,
Scapens, & Theobold, 2002).
Constituindo o delineamento mais prestigiado, por
vezes tratado como o “padrão-ouro”, a essência do desenho de pesquisa
experimental reside no grau de controle das variáveis que seriam capazes de
influenciar o objeto analisado (variável dependente). Em um desenho
experimental, o pesquisador tem potencial controle sobre todas as variáveis que
podem influenciar o seu objeto de estudo, tornando-se possível eliminar
explicações alternativas (variáveis extrínsecas) (Ryan, Scapens, &
Theobold, 2002). Para tanto, este desenho exige a existência de um grupo de
controle e a aleatoriedade dos indivíduos participantes na pesquisa (Ryan,
Scapens, & Theobold, 2002).
Entretanto, este delineamento não é tão comum nas
pesquisas em contabilidade que se utiliza, em grande parte, de delineamentos
quase-experimentais (Ryan, Scapens, & Theobold, 2002). Os delineamentos
quase-experimentais são utilizados quando a distribuição aleatória dos
indivíduos participantes e o controle de laboratório são inviáveis (Campbell
& Stanley, 1979). Seja um delineamento experimental, seja um delineamento
quase-experimental, vê-se necessário validá-lo. Para Oliveira, Walter e Bach
(2012), a validade refere-se ao rigor metodológico adotado pelo pesquisador no
desenvolvimento de uma pesquisa e procuraria, de maneira geral, convencer o
leitor acerca da qualidade do experimento ou quase-experimento realizado. Esta
validade pode ser: a) estatística; b) do construto; c) interna e; d) externa
(Luft & Shields, 2014).
O primeiro tipo de validade, a estatística, consiste
em garantir que a relação de causalidade não advém da violação dos pressupostos
dos testes estatísticos empregados pelo pesquisador (Luft & Shields, 2014).
Dentre os desafios enfrentados pelo pesquisador, está o de não cometer erros de
tipo I (afirmar que existe relação de causalidade, quando não existe) e tipo II
(afirmar que não existe relação de causalidade, quando existe). Além disto, é
necessário ao pesquisador atentar-se quanto a possíveis erros de mensuração das
variáveis do experimento (Ryan, Scapens, & Theobold, 2002).
O segundo tipo de validade, a do construto, está
relacionada a operacionalização dos conceitos em variáveis. Esta validade
depende do quão bem a variável mensura o que se propõe a mensurar (Luft &
Shields, 2014). Steckler e McLeroy (2008) corroboram esta ideia, afirmando que
o construto é válido quando as variáveis operacionais representam adequadamente
o conceito teórico. Na pesquisa em contabilidade, o desafio surge no momento de
operacionalizar certos conceitos, mais abstratos (como nível de conservadorismo
contábil); diferente de variáveis como sexo ou idade, menos abstratos, há mais
subjetividade neste processo de operacionalização (Ryan, Scapens, &
Theobold, 2002).
O terceiro tipo de validade, a interna, procura
atestar que a relação de causalidade é dada pela explicação proposta e que outras
possíveis explicações não são viáveis, já que foram controladas no desenho de
pesquisa (Ryan, Scapens, & Theobold, 2002). De acordo com Luft e Shields
(2014), a validade interna logo é maior quando é possível reduzir o número de
hipóteses rivais. O desafio do pesquisador reside em garantir que não há
variáveis omissas que podem explicar a variação da variável dependente, ou
seja, garantir que os fatores exógenos foram, de fato, controlados (Ryan,
Scapens & Theobold, 2002). Entretanto, quanto maior o controle, maior o
número de dados requisitados e, consequentemente, maior a complexidade do
desenho de pesquisa empregado (Luft & Shields, 2014).
O quarto e último tipo de validade trata neste ensaio,
a externa, está relacionada a capacidade de generalização dos resultados (Luft
& Shields, 2014). A generalização é uma das premissas da pesquisa de
tradição positivista-quantitativa, pois é por meio dela que se torna possível
predizer fenômenos, pela determinação de leis gerais (Ryan, Scapens, &
Theobold, 2002). O desafio do pesquisador reside em evidenciar que a realidade
de causalidade não existe apenas no contexto analisado. Entretanto, o desafio
do pesquisador, quanto a validade externa, é o tradeoff enfrentado: com
menor nível de controle aumenta-se a validade externa e diminui-se a validade
interna. Com maior nível de controle, diminui-se a validade externa e
aumenta-se a validade interna.
Portanto, o pesquisador que segue a tradição
positivista-quantitativa enfrenta uma série de desafios para validar os seus
desenhos de pesquisa. Esta validação é necessária para que as relações de
causalidade se provem bem fundamentadas.
Referências
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T. R., & Zeff, S. A. (2015). Accounting Research: Past, Present, and
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